POBREZA - ESTADO VERSUS SOCIEDADE CIVIL

Parece que, subitamente, se descobriram dois milhões de pobres em Portugal. Uma constatação que “envergonha “ Cavaco Silva, tão interessado nos roteiros para a inclusão, e faz surgir programas de demagogia pura que, ao pretenderem criar a ilusão de que se está a fazer alguma coisa, permitem que se deixe tudo na mesma.
Ouvindo os Prós e Contras, de Fátima Campos Ferreira, quase somos levados a concluir que os pobres são pobres por culpa própria. Se estão desempregados, em grande parte deve-se ao facto de não quererem os trabalhos que os imigrantes aceitam e, se estão pobres pelo endividamento excessivo, é porque as suas opções irrealistas de consumo para isso os empurraram.
Até parece que as culpas não têm rosto, um rosto por sinal cruel e desumano, consubstanciado num mercado e numa globalização que se auto regulam negando a equidade e o direito à vida àqueles que alimentam a sua essência. Para mim é indiferente que se diga que o número de pobres em Portugal não tem vindo a aumentar e até acredito que não. Há já uma década que a percentagem dos 20% está em cima da mesa, e até já esteve acima dos 20%. O que está em causa é que há um empobrecimento generalizado de uma população que, ou já era pobre, ou não tendo ainda atingido o limiar da pobreza, para lá caminha. E isto enquanto se verifica um enriquecimento atordoante dos que já eram ricos através do agravamento das condições de vida dos mais pobres.
Quando se insinua que o português até pode recusar o trabalho que o imigrante aceita, oculta-se a situação de escravatura e indignidade que se impõe ao imigrante. O imigrante está por tudo e aceita tudo: viver num buraco com rendas especulativas e trabalhar de sol a sol por menos de metade do ordenado mínimo. Vou-vos dar um exemplo que colhi numa experiência que estou a fazer e que consiste em viajar em autocarros e comboios regionais por zonas interiores e bairros pobres. Num destes passeios observei duas africanas que conversavam sobre as dificuldades de ser imigrante em Portugal. Uma delas confessava à outra que lhe tinha sido cortada a água por falta de pagamento e que tinha uma bebé a quem não conseguia dar de comer. Os 200 € que ganhava, por 8 horas de trabalho diário numa empresa de limpeza, não davam para fazer face às necessidades básicas. Meti-me na conversa e sugeri-lhe que denunciasse a empresa porque em Portugal ainda havia um ordenado mínimo que tinha que ser respeitado. Disse-me que não lhe desgraçasse a vida porque se fosse reclamar nem os 200 € teria e as outras empresas do ramo também não lhe dariam trabalho.
Outra das mensagens que se pretende passar é de que muitos portugueses, com bons vencimentos, estão também pobres devido ao endividamento. E, pronto, lavam-se as mãos e limpam-se as consciências. Até parece que esta sociedade de consumo nada tem a ver com um marketing que cria a necessidade de bens que chegam ao consumidor com valores inflacionados por um crédito aparentemente benigno. Porque também ninguém parece ser responsável por este marketing insidioso e desonesto que cria pobreza à custa das ilusões. Mas não nos fiquemos por aí: há procedimentos que uma sociedade evoluída devia sancionar ao invés de incutir. Veja-se o apelo às chamadas de valor acrescentado que são feitas, à descarada, em canais públicos de televisão. Veja-se o apelo ao crédito fácil. Mas mesmo que um cidadão resista a tanto apelo outros factores de destabilização acontecem. O desemprego, a precariedade de emprego, o agravamento das taxas e das condições do Serviço Nacional de Saúde, o aumento das taxas de juro para quem compra casa, têm trazido constrangimentos que, inicialmente, o orçamento familiar não previa. Ou seja, constrói-se uma vida a partir de uma base que se pensa poder contar e, subitamente, vê-se essa base ir esboroando até partir. Tal leva as famílias, em situação de desespero, a procurarem paliativos que lhes permita prolongar a agonia à espera de uma solução de cura milagrosa que quase nunca acontece.
E não é correcto que se pretenda atirar para os ombros da sociedade civil a solução de tais casos. É como se quiséssemos passar a mensagem de que afinal o monstro que nos roubou os bens e a alma até é bonzinho e tem uma face humana. E com uma caridade que encarna a consciência de uma elite que, ao praticá-la, fica apaziguada e na paz do Senhor, que se pretende escamotear o sofrimento e a dor que se vai espalhando.
Se, como foi dito no programa PRÓS e PRÓS, cerca de 60% dos portugueses não estão ganhos para um combate à pobreza concentrado e regulado pelo Estado, é porque as mensagens do poder lhes fizeram a cabeça pensar assim. Porque enquanto os portugueses assim pensarem as empresas top continuaram a ter lucros de 150% e continuamos a alimentar as empresas de marketing dos nossos amigos que são autênticas minas de ouro em países empobrecidos.
Sem prejuízo de uma cidadania activa que concentre as suas atenções no desenvolvimento da solidariedade e de apoio ao Estado no combate à desigualdade de oportunidades e à pobreza, não nos podemos deixar ofuscar por actuações colaterais que encobrem a espinha dorsal de uma responsabilidade que terá que caber, em primeira mão, a quem governa, sob pena de hipotecarmos os nossos valores como seres humanos e sermos espoliados dos nossos princípios.

Lídia Soares


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